“ESTE POVO ME HONRA COM OS LÁBIOS,
MAS O CORAÇÃO DELE ESTÁ LONGE DE MIM”. (Mc 7,6).
Ano: B; Cor: Verde;
Leituras: Dt 4,1-2.6-9; Sl 14; Tg 1,17-18.21-22.27; Mc 7,1-8.14-15.21-23.
“ESTE POVO ME HONRA
COM OS LÁBIOS, MAS O CORAÇÃO DELE ESTÁ LONGE DE MIM”. (Mc 7,6).
Diácono
Milton Restivo
Depois de refletir
o capítulo sexto do Evangelho de João, retornamos ao Evangelho de Marcos. Damos
continuidade, através de Marcos, ao conhecimento da pessoa e da doutrina de
Jesus. Marcos aborda problemas entre fé e tradição, ensinamento divino e
ensinamentos humanos.
Lemos no evangelho de Marcos (7,1-23)
que os fariseus acusaram os discípulos de Jesus de comerem com as mãos impuras,
isto é, sem as ter lavado segundo a tradição dos antigos, o que ia de encontro
com o ritualismo religioso que eles, os fariseus, diziam cumprir rigorosamente
e impunham ao povo sob pena de, se o povo não a cumprisse, seria maldito.
Quem eram estes
fariseus e por que Jesus se opunha tanto a eles? Os fariseus eram um grupo
religioso que se originou dois séculos antes de Jesus. Eram líderes de um
movimento religioso para trazer o povo de volta a uma submissão estrita à
palavra de Deus e eram considerados geralmente como os servos mais espirituais
e observadores da Lei de Moisés e adoradores de Deus. Mas, na preocupação de
fazer cumprir a vontade de Deus, os fariseus criavam leis próprias e coisas
absurdas e ritualizavam coisas que o povo não tinha condições de cumpri-las e,
por isso, os fariseus julgavam-se santos e tinham o povo como escória,
ignorante e maldito, e não perdiam oportunidade de criticar e condenar os que
não agissem como eles. Eles desprezavam o povo e o
chamavam de povo maldito: “Mas este povo que
não conhece a Lei, são uns malditos.” (Jo
7,49). Mudou alguma coisa daquele tempo para os nossos dias? Com existem
fariseus ainda hoje.
Por isso, Jesus não os perdoa e chama
a atenção do povo a respeito das atitudes desses falsos santos (como chama a
atenção do povo hoje a respeito dos fariseus dos nossos dias): “Os
doutores da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés.
Por isso vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem
suas ações, pois eles falam e não praticam’. (Mt 23,2-3). Se existem
situações idênticas nas nossas comunidades, não é mera coincidência, é que,
realmente, os fariseus ainda não deixaram de existir.
Jesus não fica por
ai e continua: “Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos
outros. Gostam dos lugares de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas
sinagogas; gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de que as pessoas
os chamem mestre.” (Mt 23,5-6).
Na sequência dessas
colocações, Jesus usou palavras fortes contra os fariseus no Evangelho de
Mateus: “Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas [...] Vocês
exploram as viúvas, e roubam suas casas, e para disfarçar, fazem longas
orações.” (Mt 23, 13.14).
Ainda, no Evangelho
de Mateus, Jesus os chama de hipócritas (23,13.14.15.23.25.27.29), de
irresponsáveis e cegos (23,17.26), de guias cegos (23,16.24), cegos (23,19)
de “sepulcros caiados, bonitos por fora e cheio de ossos, podridão e
mal cheirosos por dentro” (23,27), de “serpentes e raça de
cobras venenosas” (23,33). Jesus aponta qual o grande pecado dos
fariseus: “Vocês abandonam os mandamentos de Deus para seguir a
tradição dos homens. Vocês são bastante espertos para deixar de lado o
mandamento de Deus a fim de guardar as tradições de vocês.” (Mc
7,8-9). Os evangelhos estão cheios de controvérsias entre Jesus e os fariseus,
como em Mateus 9,11.34; 12,2.14.24.38; 15,1,12; 16,6-12; Lucas 11,37-44; 12,1 e
muitos outros textos.
A oposição vigorosa
de Jesus contra os fariseus deixava muitos perplexos. A maioria das pessoas
daquele tempo pensava que se alguém fosse fiel ao Senhor, certamente seriam os
fariseus.
Jesus,
decididamente, inverteu os valores do mundo; “Vocês gostam de parecer
justos diante dos homens, mas Deus conhece os corações de vocês. De fato, o que
é importante para os homens, é detestável para Deus”. (Lc 16,15). Ao
chamar a atenção do povo a respeito dos fariseus, Jesus foi categórico: “Com
efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês não superar a dos doutores da
Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino dos Céus”. (Mt 5,20).
Na ânsia de cumprir e fazer cumprir a Palavra de Deus, os fariseus exageravam e
se preocupavam mais com o exterior do que com o interior; preocupavam-se mais
com a higiene pessoal do que com a pureza de coração no cumprimento aos
mandamentos divinos. Os judeus estavam entre a tensão das tradições criadas e
impostas pelos fariseus ao povo e a vida baseada na pureza do coração
apresentada por Jesus. Jesus não estava contra a Lei, mas contra a mentalidade
dos fariseus na interpretação da Lei que destruía a fé pura. Jesus critica os
que anulam o mandamento de Deus pela tradição criada pelo próprio homem: “Assim
vocês esvaziaram a palavra de Deus com a tradição de vocês.” (Mt
15,6).
Como vemos a
primeira leitura, o livro do Deuteronômio manda não colocar outro mandamento
além do mandamento designado por Deus: “Não acrescentem nada ao que eu
lhes ordeno, nem retirem coisa nenhuma. Observem os mandamentos de Iahweh seu
Deus de modo como lhes ordeno. [...] Portanto, coloquem tudo
em prática, pois isso tornará vocês sábios e inteligentes diante dos povos.” (Dt
4,2.6). Mas para os fariseus a tradição que eles mesmos criaram pesava mais e
tinham mais valor do que as determinações de Deus. É o mesmo que muitas vezes
acontece e vemos também na Igreja nos nossos dias. Muitas vezes damos mais
valor ao ritualismo e às normas secundárias do que ao fundamental. É muito
comum a gente ouvir dizer, para se justificar que ‘sempre se fez assim’.
A moral que Jesus apresenta é opção por ele e não por ritualismos que estão
fora da Palavra de Deus. Jesus não é contra o rito, mas contra o ritualismo.
O povo tinha
consciência de ser o povo escolhido por Deus e que tinha Deus bem próximo de
si, como vemos na primeira leitura: “Qual é a grande nação que tenha os
seus deuses tão próximos, como o Senhor nosso Deus, sempre que o
invocamos?” (Dt 4,7). A Lei de Deus é o grande testemunho da sabedoria
do povo, e é a expressão da vontade de Deus, que é a justiça: “Que
grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que eu lhes
proponho hoje?” (Dt 4,8). A religião só vai manifestar a presença de
Deus se o fizer pela prática de leis justas que respeitem o direito. Mas,
infelizmente, o que vemos, é tanta gente fazer da religião um motivo para se
promover, como o faziam os fariseus, para se julgar mais santo e se julgar no
direito de criticar, esquecendo-se do que Jesus disse aos fariseus: “Vocês
gostam de parecer justos diante dos homens, mas Deus conhece os corações de
vocês. De fato, o que é importante para os homens, é detestável para Deus” (Lc
16,15), e também do que Jesus disse ao povo a respeito dos fariseus: “Vocês
devem fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois
eles falam e não praticam.” (Mt 23,3), o que se deve ser entendido
como: “façam o que eles dizem, mas não façam o que eles fazem”. Hoje,
quantos cumprem religiosamente o “dever” de participar da missa todos os
domingos, não perdem uma solenidade festiva da Igreja, comungam sempre que
participam de uma celebração eucarística, rezam periodicamente o terço, não
perdem uma reunião de seu grupo, pagam o dízimo com exatidão, mas ignoram o
irmão, esquecendo-se do que o Mestre disse: “... eu estava com fome, e
vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu
era estrangeiro e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me
vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não foram me visitar. [...] Eu
garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses
pequeninos, foi a mim que não o fizeram.” (Mt 25,42-43.45).
De que adiantou
então cumprir religiosamente as ritualidades se se esqueceram da recomendação
de Jesus: “O meu mandamento é este: amem-se uns aos outros, assim como eu
amei vocês. Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos. Vocês são
meus amigos, se fizerem o que eu estou mandando”. (Jo 15,12-14).
A participação na
Eucaristia só tem sentido e valor se o mandamento do amor estiver sendo levado
a sério, senão o farisaísmo do tempo de Jesus continua operante nos nossos
tempos.
Os fariseus do
tempo de Jesus também cumpriam rigorosamente as determinações ritualísticas,
mas ignoravam as necessidades dos seus irmãos, por isso foram recriminados por
Jesus. Os fariseus repreenderam os discípulos de Jesus por comerem pão com as
mãos impuras, isto é, sem lavar as mãos. Para os fariseus isso não era questão
de higiene corporal, mas a tradição que eles criaram dizia que não se podia
tocar em alimento algum sem ter lavado as mãos sem incorrer numa falta
religiosa ou ritualística, e isso ofendia a Deus, e por isso Jesus chama aos
fariseus de hipócritas e depois explica aos seus discípulos, dizendo: “Será
que nem vocês entendem? Vocês não compreendem que nada do que vem de fora e
entra numa pessoa pode torná-la impura, porque não entra em seu coração, mas em
seu estômago, e vai para a privada? ’ (Assim Jesus declarava que todos os
alimentos eram puros).” (Mc 7,18-19).
Não é o que entra
pela boca que torna o homem faltoso com o seu Deus ou seu irmão, porque tudo o
que entra pela boca tem como destino, como disse Jesus, “a latrina”. Jesus
continua dizendo: “É o que sai da pessoa que a torna impura.” (Mc
7,20).
O que é que sai da
boca das pessoas? As fofocas, a maledicência, o ódio, a agressão, a inveja, o
orgulho, a falta de amor, e por isso Jesus diz: “Pois é de dentro do coração
das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes,
adultérios, ambições sem limite, maldades, malícia, devassidão, inveja,
calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas essas coisas más saem de dentro da
pessoa, e são elas que a tornam impura.” (Mc 7,21-23). E em
Mateus Jesus diz a mesma coisa, complementando e dizendo: “Ao
contrário, as coisas que saem da boca vêm do coração e essas coisas é que
tornam o homem impuro. Pois é do coração que vêm as más intenções: crimes,
adultério, imoralidade, roubos, falsos testemunhos, calúnias. Essas coisas é
que tornam o homem impuro; mas comer sem lavar as mãos não torna o homem
impuro.” (Mt 15,18-20).
Jesus declarou que
a contaminação religiosa do ser humano não reside na prática de ritos
exteriores, mas na degradação interior do coração que se manifesta
exteriormente. Em outras palavras, Jesus deixou claro que o mal que sai da boca
é muito maior do que qualquer mal que possa entrar nela quando se come alimento
ritualmente impuro.
Nas
bem-aventuranças Jesus disse: “Felizes os puros de coração, porque
verão a Deus.” (Mt 5,8). Não são os alimentos que entram pela boca que
torna o homem impuro, mas é a Palavra que purifica o coração: “Vocês já
estão limpos por causa da palavra que eu lhes falei. Fiquem unidos a mim, e eu
ficarei unido a vocês.” (Jo 15,3-4).
Nas suas cartas o
Apóstolo Paulo transmitia às suas comunidades esse mesmo ensinamento, quando
escrevia: “Finalmente, irmãos, ocupem-se com tudo o que é verdadeiro, nobre,
justo, puro, amável, honroso, virtuoso, ou que de algum modo mereça
louvor.” (Fl 4,8).
Na carta aos
Romanos, Paulo adverte aos que conhecem a Palavra e mesmo assim deixam sair do
coração toda espécie de ofensa que atinge ao irmão: “Eles fazem o que não
deveriam fazer: estão cheios de todo tipo de injustiça, perversidade, avidez e
malícia; cheios de inveja , homicídio, rixas, fraudes e malvadezas; são
difamadores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, soberbos, fanfarrões,
engenhosos no mal, rebeldes para com os pais, insensatos, desleais, gente sem
coração e sem misericórdia. E apesar de conhecerem o julgamento de Deus, que
considera digno de morte quem pratica tais coisas, eles não só as cometem, mas
também aprovam quem se comporta assim.” (Rm 1,29-32). Na terceira
leitura Tiago ensina que, pela Palavra, o Senhor nos criou e que o acolhimento
da Palavra é o princípio da Salvação, pois ela se identifica com Aquele que a
comunica: “Por sua própria iniciativa, ele nos gerou por meio da
Palavra da verdade, para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas
criaturas. [...] Sejam praticantes da Palavra, e não apenas
ouvintes, iludindo a si mesmos. Quem ouve a Palavra e não a pratica, é como
alguém que observa no espelho o rosto que tem desde o nascimento; observa a si
mesmo, e depois vai embora, esquecendo a própria aparência.” (Tg
1,18.22-24). Quem ouve a Palavra e não a pratica, perde a identidade com quem o
criou e esquece de sua própria fisionomia que é a imagem e semelhança do seu
Criador (cf Gn 1,26ss). Quem ouve a Palavra e a põe em prática (cf Lc
11,29) segue as pegadas do Mestre, exercita o mandamento do amor: “O
meu mandamento é este: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês. Não
existe amor maior do que dar a vida pelos amigos. Vocês são meus amigos, se
fizerem o que eu estou mandando”. (Jo 15,12-14) e somente valoriza no
irmão o que ele tem de belo e puro, não se preocupando com a maneira como ele
se alimenta, se de mãos limpas ou menos limpas; o importante é que o irmão está
sendo saciado na sua fome e é sobre isso que Tiago chama-nos a atenção: “Por
isso, deixem de lado qualquer imundície ou sinal de malícia, e recebam com
docilidade a Palavra que lhes foi plantada no coração e que pode salva-los.” (Tg
1,21). A prática da Palavra se traduz no cuidado que temos para com os
necessitados: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é
esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção
do mundo.” (Tg 1,27).
A Palavra será
sempre a orientadora da verdadeira religião, ensinando a não dar valor às
tradições que anulam a Verdade e estimulando à prática da solidariedade.
Ela forma o coração
para que dele saiam não impurezas, mas as obras do amor.
Sacrificar a
prática do amor por tradições egoístas não condiz com o projeto de Jesus.
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